Interesse público x Interesse privado
Em direito administrativo prevalece dentre outros princípios norteadores, aquele que apregoa que o interesse público se sobrepõe ao interesse privado. Muito importante este princípio, eis que, vivemos num país democrático, sendo utilizado habilmente pelos aplicadores do direito, mas quando se trata do administrador público, independentemente do escalão que ele integre, é aí aplicado sem o menor critério, e muitas vezes na falta de melhor argumento.
No entanto, há muito tempo debato que na prática as coisas não podem funcionar dessa forma. Pra dizer a verdade, não é bem assim que se deve tratar a relação particular x estado (sentido lato). É de um simplismo triste querer justificar qualquer atitude do administrador público, seja qual for sua esfera de atuação, com a mera afirmação de “o interesse público se sobrepõe ao interesse particular”.
Vejamos as contendas iniciadas com a criação nesta Cidade, das famosas e odiadas áreas de proteção ao ambiente cultural – APACs.
Apesar de ser uníssono mesmo entre aqueles que as combatem, junto aos quais me coloco, que referido instituto é importante ferramenta para a preservação e valorização do patrimônio de nossa Cidade, alegando estes ainda, acertadamente, que o que está errado é como ele é colocado para a coletividade, ou seja, e forma ilegal e anti-democrática, ouso divergir no sentido de que nem pra isso ele vem servindo, pois existe em seu seio uma relatividade perigosa, que nos coloca totalmente desprotegidos nas mãos do administrador público, seja ele quem for.
Assim é que quando se trata de mexer, gravar ou diminuir o alcance ou o brilho do direito de propriedade, em não sendo o caso de se adotar o instituto do tombamento cujo procedimento é, ao mesmo tempo, muito mais rigoroso e democrático que o da preservação e o da tutela, creio que o administrador público então deve trilhar outros caminhos não tão simplistas como a edição de APACs.
Quem já leu um decreto criador de uma APAC entende bem o que estou dizendo. Pior é o próprio processo administrativo que levou à sua edição. Estes são despidos de critérios técnicos mínimos, pareceres urbanísticos, ou laudos arquitetônicos demonstradores da importância cultural, histórica, arquitetônica e ambiental que justifique a inclusão de um determinado bem, seja ele público ou privado, dentro do âmbito de uma área de proteção. Assim, as razões técnicas concretas que levaram àquela inclusão inexistiram por completo, criando de imediato para o interessado enorme dificuldade, intransponível barreira, pois não sabe ele o que replicar, ou como contestar!
Ao mesmo tempo sabemos que em todas as APACs até agora editadas, em nenhum momento o particular foi chamado a opinar ou discutir a criação de uma área de proteção do ambiente cultural, o que fere frontalmente os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Portanto, foi e tem sido muito fácil para a municipalidade alegar, ingenuamente, o elevado interesse arquitetônico, cultural, urbanístico e de ambiência dos bens atingidos, sejam públicos ou privados, amparada ainda na risível afirmação de que o interesse público se sobrepõe ao interesse privado, para então decretar o tombamento, a preservação ou a tutela dos bens atingidos, sem, no entanto, provar na prática o alegado.
Por isso entendo que em casos assim, não importando qual seja o bem, nada pode ser decidido pelo administrador público, sem a prévia participação do particular e/ou da coletividade. Melhor seria que a Câmara Municipal discutisse a criação dessas áreas de proteção, legislando sobre o assunto, por ser o procedimento neste caso muito mais democrático e transparente.
E que não se diga, por favor, que o ato de tombar, preservar ou por sob tutela este ou aquele bem é um ato discricionário (a norma deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de modo que o administrador público poderá escolher, segundo critérios de conveniência e oportunidade, qual o melhor caminho para o interesse público), pois não o é, sendo sim ato vinculado (a norma estabelece que, perante certas condições, o administrador público deve agir de forma específica, sem liberdade de escolha), eis que, motivado, podendo dessa forma ser contestado pelo particular tanto na esfera administrativa como na judicial.
Dessa forma, a alegação de que o interesse público prevalece sobre o interesse privado pode levar a erros graves como os cometidos nas APACs, restando ao cidadão atingido pugnar no judiciário pelo restabelecimento da sua propriedade livre e desembaraçada daquela limitação.
Sérgio Milione
Advogado